Ao David Luiz
As chuteiras que me calças
Por tua causa., assumo, a imprensa desportiva passou a fazer parte do meu “café da manhã”.
O jornal Record citou-te há poucos dias após mais uma vitória do nosso clube: “ É preciso manter a humildade e os pés bem assentes no chão”. Resumi-te na tua própria frase. Este és tu, sem tirar nem pôr. O equilíbrio entre a gratidão pelo que é e a fé inabalável no que há de ser. Assim és tu: o homem seguro e menino sonhador. O fiel de uma balança entre o de onde vieste e o onde estás agora. Este és tu, que não me deixas transformar-te num ídolo.
Exiges ser em mim tão somente o David, sem a coroa de rei e sem a força sobrenatural que derrota os “Golias” do futebol.
Mas por muito que te esquives do estatuto de especial, na simplicidade que acima de tudo te caracteriza tão bem, não vou inibir-me de te dizer obrigada publicamente pelas “chuteiras” com que me calças cheias de garra e de serenidade, ao mesmo tempo, neste que é o meu caminho aparentemente condenado à condição permanente de não poder chutar uma bola.
“Calças-me” com as certezas de que o meu propósito é muito maior do que eu.
“Calças-me” de motivação para ultrapassar todos os obstáculos intrínsecos ao facto de uma pessoa com mobilidade reduzida ir a um estádio de futebol.
“Calças-me” cada vez mais de orgulho em ser benfiquista. As chuteiras que me calças são invisíveis aos olhos dos comuns mas são elas que também dão significado aos meus pés pequeninos e frágeis para suportar o meu corpo.
Fazes hoje o mesmo número de anos que o número que te identifica no Benfica: 23. E ainda tens tanto para voar… Numa época em que o Mundo fala de ti, eu preferi fazer diferente e falar para ti. Agradecer-te por me assentares os pés tantas vezes num chão que não piso. Trazendo-me à realidade de que o desafio não é chegar a lado algum mas sim mantermo-nos lá, fiéis ao que nos foi sempre fiel. Tu faze-lo na perfeição.
Podias ser o meu irmão mais novo, mas o líder e o cuidador és quase sempre tu. Numa proteção que nunca sufoca e numa entrega de que há alguém que providencia a minha e a tua vida. Aí também és diferente, de tanta gente que – como que a compensar-me do que não posso fazer – transforma-me numa espécie de heroína, aspirina anímica ou exemplo a seguir.
Reconheces-me pela alma que nada tem a ver com a minha condição física. É que o teu foco nunca será colocado nas pessoas, por isso dás-me sempre muito mais do que alguma vez eu julgarei que te dou. Quando empurras a minha cadeira de rodas desenhas-me asas nas costas. Quando me pegas ao colo mostras-me que a minha visão do Mundo não é limitada pela minha altura. E é a partir do teu colo que consigo percepcionar uma canção da Ala dos Namorados: “ Pelo céu às cavalitas, escondi nos teus caracóis, a estrela mais bonita, que eu já vi”.
Tu sabes que essa estrela estará sempre lá, contigo. Brilhará nos ataques e nas defesa, nos cortes e nos golos, nos penáltis e nos lances de bola parada, nos livres e nos cantos. No campo e na vida. Na tua e na minha.
“Já deixei de ser criança e tu dormes à lareira
Ainda sinto a minha estrela nos teus caracóis”.
Autor: Mafalda Ribeiro
Fonte: Jornal Record